Ulanbataar - Moscovo

Chegámos à estação com imensa antecedência. A perspectiva da viagem fez-nos ceder à antecipação, apesar da ideia de cinco dias enfiados num comboio não se encarar sem pelo menos um ligeiro receio de enfado. Só para o caso, antes de sairmos fomos comprar mais comida.
Apesar de já termos uns quilos extra de souvenirs e mantimentos, incluindo água, fomos a pé até à estação. Não podíamos deixar de aproveitar esses últimos momentos para absorver mais do fervilhar de UB. Enquanto esperávamos observámos as famílias no seu regresso depois do Nadaam, os engessados que tinham vindo ser tratados ao único hospital do país, e um considerável movimento de volumes empacotados grosseiramente. Quando o comboio finalmente chegou dirigimo-nos à nossa carruagem e fomos recebidos por uma hospedeira que, logo constatámos, não falava nenhuma língua por nós inteligível.
Depois do reconhecimento dos nossos aposentos e instalações sanitárias, apesar de tudo um pouco menos intimidantes que as do comboio chinês, quisemos percorrer as restantes carruagens e descobrir o restaurante para averiguar o menu. Longe de chegar ao fim da composição fomos impedidos de continuar e corridos de volta à nossa carruagem. Pensámos que nos estariam a dizer que ainda não havia restaurante. Talvez só depois da fronteira. Mas afinal nunca chegou a haver. Mais tarde percebemos que estávamos na única carruagem com estrangeiros, perfazendo um total de nove em todo o comboio, e que todos aqueles que tinham tentado ir até ao fim do comboio tinham sido corridos. Ninguém viu como eram as carruagens da terceira classe.
Ainda antes da primeira paragem ouvimos um considerável burburinho acompanhado pelo transporte frenético de caixas de cartão e abertura de sacos de plástico. Na aproximação à estação dá-se então uma corrida às portas e a gare transforma-se em mercado. Aqueles que pensávamos ser passageiros carregavam agora pilhas de calças de ganga, cobertores, carteiras, soutiens e guarda-chuvas. E não, nem a passagem da fronteira acabou com o negócio. Pelo contrário. A cena repetiu-se em todas as paragens, inclusive as de dois minutos em que testemunhei que nesses meros segundos é possível comprar um cobertor, uma carteira, um soutien, duas calças de ganga de tamanhos diferentes e um guarda-chuva, apesar de este já ter sido pago com o comboio em movimento. Afinal tivemos animação em todo o percurso.
A fronteira com a Rússia foi cruzada logo na primeira noite. A formalidade é tremenda e é inevitável sentir um friozinho no estômago por sermos deixados novamente sem passaporte durante toda a paragem. O procedimento dura cerca de três horas com várias revistas mas quem me conhece sabe que quando o modo dormir se liga não há como contrariar. E nem a injecção de adrenalina por ser acordada por um cão enorme a farejar-me me impede de voltar a adormecer antes de passar uma outra revista ou impresso para preencher. Conclusão: aqui, e na generalidade, o stress é relativo.
A paisagem começa a mudar logo ao aproximar-nos da fronteira com a Rússia. Os planaltos vão dando lugar a zonas montanhosas e do lado da Rússia os sinais de humanização, não necessariamente de povoamento, tornam-se quase omnipresentes. O povoamento, excepto nas cidades maiores, é feito de casas modestas adjacentes a hortas. A única zona realmente bonita do percurso é a do Lago Baikal. E chamar-lhe zona, ou mesmo região, é pouco para uma extensão de água com cerca de um terço da área de Portugal.
Afinal os cinco dias acabaram por passar sem grande dificuldade. Aproveitámos para dormir e tentar corrigir o jetlag de que sofríamos desde que chegámos a Pequim. Estudámos o alfabeto cirílico e algumas palavras e expressões básicas. Assistimos ao mercado em andamento sustentado pela avidez de consumo na Rússia profunda. É de facto contagiante. Os dois suecos não resistiram a tentar a sorte vendendo os seus excedentes de comida. E venderam, tudo, até ao último pacotinho de sumo de maçã. Comemorámos o aniversário do B., em jeito de despedida, com uma torta empacotada comprada na última estação, aguardente mongol, coca-cola e cerveja russa. Chegámos a Moscovo.

Estação de Ulaanbataar 

A nossa cabine.
O último gher.
Nova paisagem.
A primeira estação/mercado russa.
Lago Baikal.


Loja com montra.
Mais Lago Baikal.


Baltika em lata de 1 litro!

Numa destas paragens ia ficando em terra sem documentos nem dinheiro.
Tive de correr pela vida e voar para dentro do comboio em movimento.
Venda de excedentes de comida.



Russo.
Festa de aniversário!
E, finalmente, Moscovo!



Metro de Moscovo, estação Yarolavsky.

Ulan Bataar

De volta a Ulan Bataar, ficámos alojados num hotel que acaba por funcionar como uma extensão do negócio muito bem gerido pelo dono do hostel mesmo em frente. Banheira, sanita e cama, finalmente tudo o que queríamos, mas não se deixem enganar aqui pela designação hotel. Os níveis de tolerância são bem maiores no campo do que dentro de um edifício. Ainda assim serviram-nos o pequeno-almoço no quarto que tinha televisão com MTV e FashionTV. Que foi ao ar com o primeiro trovão dessa noite.
Depois de um banho e uma sesta retemperadora fomos ao centro para jantar. Não conseguimos resistir ao all-you-can-eat do Mongolian Barbecue. Um fast food que abriu primeiro no Michigan e depois de fazer sucesso por lá abriu o primeiro franshising em UB. Um buffet de ingredientes e molhos à escolha que os cozinheiros preparam no momento num disco com mais de dois metros de diâmetro e duas espadas de um. Depois dos dias de frugalidade com os nómadas a nossa prestação foi modesta mas ficámos satisfeitos. O cansaço e o início da época da chuva ditou como destino a curto prazo a cama.
Ao acordar fomos confrontados pelos efeitos de uma real deficiência de infra-estruturas. A chuva durante a noite transformou as ruas em rios e os passeios em poças de lama. Para sorte dos habitantes da cidade pouco tempo depois ficaria frio demais para chover. Saímos para ir buscar os nossos bilhetes de comboio UB-Moscovo. Entretanto conseguimos combinar e encontramo-nos com a R. e o A. para uma visita ao Museu de História da Mongólia e almoço. Sem internet ou telefone, imaginem! Despedimo-nos deles no seu regresso aos U.S. e vagueámos toda a tarde pela cidade para descobrir os velhos edifícios construídos sob a administração soviética e também os novos condomínios.
No dia seguinte fomos ao Black Market que infelizmente ainda estava fechado depois dos dias de festa do Nadaam. Ainda assim e depois de umas voltas pelas lojas encontrámos exactamente os souvenirs que queríamos na Department Store a preços razoáveis e ainda com um desconto que nem tivemos de pedir.
Enquanto nos abrigávamos da chuva numa paragem de autocarro tivemos uma conversa animada com dois senhores. Animada para eles, e bastante longa tendo em conta que eles não falavam inglês e nós nem mongol, nem russo, nem alemão. Mesmo assim fizemos entender que éramos de Portugal, ao que o senhor respondeu: – Lissabona! e: – Ieiaho Oaho! Para nos ajudar a perceber o senhor deu um jeitinho ao pé. Cristiano Ronaldo! Ah, mas há outro, e abanou a mão para trás e apontou para uma coisa de cor preta. Eusébio!? Perguntámos, incrédulos. – Sébio!! O autocarro que eles esperavam chegou e nós ficámos na paragem mais por mais um bocado, de boca aberta.
Prevendo cinco dias espartanos a bordo do comboio, refastelamo-nos na French Bakery, no Café Genève e no restaurante cubano onde bebemos uma garrafa de vinho tinto, reserva, da região de Valência, sim Espanha, servido por um empregado mongol que falava fluentemente espanhol. Ficámos, mais uma vez, de boca aberta.


kurstai e cavalos selvagens

Foram apenas alguns dias, eu diria mesmo escassos dias, em que partilhámos o trajecto e as experiências do nosso tour pela Mongólia com os nossos companheiros mas quando chegou o momento das nossas expedições tomarem diferentes rumos tivemos a estranha sensação de estarmos a despedir-nos de amigos de longa data. A empatia é um lugar estranho e, sim, perde-se muito na tradução. Carregámos as mochilas na carrinha, tirámos as fotos de grupo e fizemo-nos às centenas de quilómetros até ao Parque Nacional de Kurstai.
Saímos de manhã e estava programado chegarmos a tempo de ver os cavalos selvagens antes do pôr-do-sol. Esperávamos fazer todo o caminho pelos erráticos trilhos, um dia todo de pó e solavancos, mas a dada altura apanhámos uma auto-estrada. Provavelmente só umas dezenas de quilómetros, depois mais trilhos outra vez até ao Parque. O resort estava cheio. Fui eu que o chamei assim porque de facto era já uma instalação hoteleira com restaurante, bar, gift shop e sala de conferências. O nosso motorista arranjou-nos alojamento no gher de duas raparigas que trabalhavam lá. Ficámos fora do resort mas com acesso ao privilégio de umas instalações sanitárias. Lavatórios, sanitas, duche, água corrente, fria e quente!
Apanhámos boleia na carrinha de uma outra expedição até ao vale onde iríamos esperar que os cavalos selvagens viessem ao rio beber água. E, porque o mundo é realmente pequeno, na carrinha seguia um casal com dois miúdos que tinham sido alunos, na China, dos companheiros de viagem, a R. e o A., de quem nos tínhamos despedido essa manhã. Enquanto esperávamos pelos cavalos contaram-nos que tinham estado a viver na China mas como agora iam mudar para a Polónia aproveitaram para fazer o Trans-Mongólia. O mesmo percurso que nós mas com duas crianças pequenas e toda a bagagem das mudanças.
Regressámos ao gher onde íamos passar a noite para jantar. Mais uma vez fomos surpreendidos pelo repasto mas pelos vistos tivemos sorte porque um turista incauto veio queixar-se de tudo na viagem dele. Sorte ou sabíamos de antemão que não íamos para umas férias em pacote regime TI. Na manhã seguinte fizemos uma caminhada. Depois do almoço e de uma brincadeira com os miúdos fizemo-nos a caminho com destino a Ulan Bataar.


Infra-estrutura rodoviária.
A auto-estrada.

Paragem para almoço.
Kurstai.

Finalmente os cavalos selvagens. (Os três pontos ligeiramente à direita do centro da foto.)
Alojamento.

Caminhada pela manhã.
Salão de beleza.
Corte de cabelo, brushing e maquilhagem.
Bar do gher resort, que luxo!
Chegada a Ulan Bataar.

os caminhos da água - Ulaan Tsutgalan

A caminho do que seria o destino mais a Oeste da nossa tour, a grande cascata no encontro dos rios Ulan e Orkhon, seguimos a maior parte do tempo junto ao percurso deste último. Mais umas centenas de quilómetros de trilhos indecifráveis numa carripana amarela. Eu que costumo adormecer a andar de carro como uma criança de colo, nestes dias todos de viagem tive poucas oportunidades para isso. Mas não foi só pelos solavancos causados pelo piso irregular. Tivemos as cantigas do A., os abutres, o Stop! da K., as paragens para almoço no meio de nada, o aceno de estranhos, as monjas em peregrinação a pé, a total e completa ausência de referências, o fim do mundo tal como o reconhecemos. O início de um todo novo mundo!
Já vos tinha dito que a Mongólia é surpreendente?
Chegámos ao sítio onde ficaríamos alojados ao fim da tarde, mesmo a tempo de encontrar o pai da família a tomar as primeiras providências para o jantar. Hesitei em sair do carro mas engoli em seco as minhas frescuras de menina da cidade para constatar que matar uma ovelha com as suas próprias mãos para alimentar a família é muito mais honesto e nobre do que comprar alfaces no mercado biológico do Príncipe Real. O confronto com as leis da sobrevivência tornam-nos mais humildes. Empurrei isto tudo mais tarde com o chá salgado com leite de cabra que nos ofereceram quando nos convidaram a entrar no seu gher. A única alternativa era o aarag que é mais uma vez leite de cabra mas fermentado e ligeiramente alcoólico. Ainda hoje fico nauseada só de me lembrar do cheiro de leite de cabra. Fomos até à cascata para arejar.
Desta vez participámos na preparação do jantar mas só nos deixaram mexer depois de a massa estar preparada, só com farinha e água. Fizemos umas trouxinhas recheadas de carne e legumes, e só de legumes aqui para a enjoadinha, que são cozidas a vapor. Não consigo lembrar-me do nome em mongol mas são basicamente como os dumplings que se podem comer na China Town ou os gyoza japoneses.
Ainda tivemos tempo para conviver com os miúdos, as cabras e o cão pastor que me escoltou até atrás das pedras onde encontrei alternativa à casinha. Fomos também ao supermercado (!), um barracão a umas centenas de metros do acampamento e a centenas de quilómetros de qualquer outra edificação, aberto até às onze da noite onde tinham a Borgyo e mais duas marcas de cerveja chinesa e russa, bolachas Oreo e shampoo Elvive. No dia seguinte tínhamos um passeio a cavalo programado para as sete. Apesar de mais baixos que a maior parte das raças de cavalos, os cavalos mongóis são tão teimosos e fortes para fazerem o que querem se não sentirem convicção do cavaleiro e mandarem-no ao chão se lhes apetecer. Só tive problemas na parte da convicção mas foi o suficiente para não conseguir relaxar e desfrutar como devia. Mas correu tudo bem, sem incidentes que deixassem feridos com onze costelas e a clavícula partidas dois dias à espera de helicóptero. Já perceberam porque é que não deu para relaxar?
Vale do rio Orkhon.
Abutres.
Parámos para tirar fotografias aos abutres.
Os miúdos pararam e acenaram para as fotografias.
Caminhos paralelos.
Eu e o A., o nosso motorista-tenor.
Ulaan Tsutgalan - a grande cascata.
Toda gente ajudou na preparação do jantar mas só a O. é que sabia o que estava a fazer.
Manada de yaks conduzida por pastor de mota.
A pequena caixa à direita da mota é o WC.
O alojamento.
Passeio a cavalo pela manhã.
Chegámos inteiros!